14.7.21



Escritor Mistério 


O PROFESSOR ZEUS

Hoje vamos ter a nossa primeira aula de eletrotecnia. As raparigas da turma estão entusiasmadas, porque a fama de galã do professor Zeus precede-o aonde quer que ele vá. Não falam de outra coisa. Por acaso, não tenho jeito nenhum para essa disciplina. Nasci com o dom de rebentar voltímetros e queimar amperímetros. Espero que ele consiga fazer milagres, caso contrário as aulas prometem ser eletrizantes. O professor Zeus teve uma infância atribulada e há muita gente que não gosta dele, mas uma coisa é certa: ele faz parte da história da cidade do Olimpo. Alguns professores, com inveja à mistura, chamam-lhe o “povoador”. Referem-se, obviamente, às suas dezenas de casos polémicos e incursões amorosas extraconjugais, que envolvem titânides, deusas, semideusas e humanas sem distinções: jovens, velhas, magras ou obesas. O deus-pai tem um currículo invejável de conquistas e já vai no seu terceiro casamento. Depois de se ter divorciado da Témis e da Métis, mãe de Atena, juntou-se à Hera, deusa-mãe do matrimónio, que é advogada numa sociedade especializada em divórcios litigiosos. Além de ter um feitio possessivo, vingativo e cruel, a Hera está sempre desconfiada do marido e persegue-o para toda a parte. Ela sabe que o Zeus não se reformou por completo e há muitas mulheres no Olimpo que ainda cobiçam o deus-pai. Não facilita. O professor, além de lecionar, tem um negócio de venda e reparação de electrodomésticos que se chama “Relâmpago”. Foi o seu filho Hefesto que o ajudou a construir a loja e agora usa-a como um alibi para as suas saídas nocturnas em nome de trabalhos urgentes ao domicílio. Um dia a coisa ainda corre mal e é apanhado com a boca na botija mas, até lá, não há casa que fique sem luz! Foi o aconteceu com a deusa Maia, que deu à luz o Hermes. Muitas vezes é o deus-mensageiro que o encobre. Fica a vigiar os lugares ou substitui-o na loja. Foi também o que aconteceu com a deusa Leto, que deu à luz o Apolo e a Artémis. E foi o que aconteceu com a deusa Métis, que deu à luz a Atena. Por falar em luz, o Zeus é um adepto tão fervoroso do SL Benfica, que está sempre a recordar o dia em que visitou o estádio e teve a águia Vitória no braço. Tem uma fotografia desbotadas que lhe tiraram na altura e passa a vida a mostrá-la a toda a gente: ele e a águia, a ver a águia, sempre com a águia. O casamento entre o Zeus e a Hera foi uma cerimónia sem precedentes, com o copo de água a decorrer no jardim das Hespérides, mas depressa se tornou óbvio de que não havia grande amor entre ambos. A própria deusa-mãe teve uma quinta onde organizava casamentos, mas desleixou-se na sua gestão e teve de a vender. Andava tão obcecada com os filhos ilegítimos do marido, contra quem lançava mil e uma armadilhas, que se esqueceu do negócio. Desde então, ganhou uma aversão neurótica a vestidos de noiva. Assim que vê um, desmaia de imediato. Na escola, não há nada que lhe passe ao lado. Está sempre bem informada. A Íris, da equipa de atletismo, leva-lhe as novidades e traz as suas ordens aos mais chegados. A Hera é uma mulher influente na cidade do Olimpo. Além de fazer parte da Associação de Pais, onde estão os deuses primordiais, ela conhece a justiça divina melhor do que ninguém. Não há tribunal que não a tema. A deusa-mãe é venenosa e traiçoeira como um escorpião. Raramente se arrepende do que faz e, quando alcança os seus intentos, pavoneia-se no seu poder absoluto. É como se ela tivesse mil olhos. Vê e sabe tudo o que se passa na cidade. Por isso é tão perigosa e não deve de ser subestimada. Quando o Zeus a traiu com a humana Alcmena, a deusa-mãe achou que já era demais e perdeu a cabeça: contratou um detetive para descobrir onde   morava a amante e, depois, tentou atropelá-la. Foi um caso muito badalado no Olimpo, porque a opinião pública pegou nele para discutir a equidade dos tribunais entre os deuses e os humanos. A Hera não foi parar à prisão, porque tinha uma excelente equipa de advogados de defesa e a Alcmena não apresentou queixa, preferindo desaparecer do mapa. Durante anos nunca mais ninguém soube do seu paradeiro até que, no ano passado, resolveu regressar com o seu filho Héracles. A Hera deve estar possessa com a sua presença na cidade. Ainda por cima, o Héracles entrou na escola Olimpo! O professor Zeus, esse, continua a abrir as suas asas junto das mais incautas, como se nada fosse. Ultimamente, tem passado muito tempo na secretaria da escola a falar com a tesoureira Danae. É uma senhora discreta, que está enfiada no seu buraquinho a contabilizar e a processar salários, mas ele achou-lhe piada. No outro dia até lhe ofereceu uma máquina de contar moedas! O romance parece tão óbvio e à vista de todos, que o filho dela, o Perseu, tem de aguentar com as insinuações dos seus colegas. Quando querem, os jovens podem ser cruéis uns com os outros. Felizmente, o Perseu tem uma personalidade forte e madura digna de um herói. Não se deixa ir abaixo facilmente. É o oposto do Édipo, que é o menino da mamã e chora por tudo e por nada. Nunca vi um miúdo tão lamechas e queixinhas. Quando a sua mãe Jocasta tem algum imprevisto no trabalho e pede ao seu pai que o venha buscar, finge que tem um ataque de ansiedade e desata aos berros à porta da escola. Por falar em jovens cruéis, lembrei-me do Narciso, que passa a vida a tirar selfies com o seu iPhone e não se importa com nada nem com ninguém. A sua única preocupação é fotografar, editar, filtrar e publicar no perfil das suas redes sociais, onde podemos encontrar milhares de fotos do seu rosto nas poses mais inimagináveis. Por vezes, até publica fotos do seu próprio umbigo e, se ao fim do dia não tiver mais de mil gostos, fica furibundo. É um filme vê-lo a sacar do mini-espelho que leva no bolso das calças e a retocar a popa, antes de tirar outra foto com outra expressão, noutro ângulo, noutra pose e noutro lugar. Na escola há uma ninfa chamada Eco que está apaixonada por ele, mas nunca foi correspondida. Ela faz de tudo para o agradar e o seduzir, mas o Narciso não lhe liga nenhuma. É uma pena, porque a rapariga até é bonita. Não me quero armar em poeta ou em profeta, mas tenho a certeza de que um dia o amor florescerá no peito do Narciso. No meu caso sucede o oposto, porque sou tímido e complexado com o meu nariz. Não me sinto à vontade quando estou num café que tem vários espelhos através dos quais posso ser visto de vários ângulos, inclusive o meu perfil narigudo! Quando uma miúda de quem gosto se senta na minha mesa, não sei o que dizer e desato a gaguejar. Tem a ver com o sistema nervoso, diz a minha mãe, depois de chegar a casa e antes de cair na cama. Ela teima em dizer que o meu pai é um deus, mas só se for o deus-do-toca-e-foge! Quando a minha mãe me fala dele, recordo-me dos meus amigos que tocam às campainhas dos prédios e fogem a voar como se tivessem as asas do Ícaro nas costas, pois foi o que ele fez após o meu nascimento. Ainda hoje não sei quem ele é nem onde mora. Acho que estou num limbo existencial, mas se me perguntarem: - Afinal de contas, és um deus, semideus ou uma pessoa normal? - responderei sempre - Não sei o que sou, mas neste mundo ninguém é normal!